Pastel

Pastel é aquela comidinha que costuma mexer com nossos corações. O cheiro de óleo velho e o vinagrete azedinho são capazes de destravar memórias das mentes mais carrancudas.

Eu me lembro de quando eu tinha uns 9 anos e minha irmã era responsável por fazer feira com cerca de 10 reais, quantia que era pequena, mas que dava para fazer malabarismo e alimentar as quatro bocas lá de casa. Minha irmã já tinha aprendido o truque mais batido das donas de casa que precisavam economizar: ir para a feira na hora da xepa. Nem era orientação da nossa mãe, por vontade própria ela deixava para fazer a feira no final, comprava tudo bem barato para fazer sobrar 2 reais com destino certeiro: comprar dois pasteis, um para mim e outro para ela.

Hoje, nesse mundo pós-apocalíptico em que vivemos, não há malabarismo que faça sobrar dinheiro para comprar dois pasteis após a feira dominical. Fiz como a maioria dos brasileiros e deixei de comê-los nesses últimos anos. Até a última semana, quando tive uma ideia que não sei de onde veio, mas assim que veio eu enviei a mensagem para o conje:

-Vamos fazer pastel no domingo???

Escarola e Japão

Eu decidi que iria fazer pasteis de escarola e queijo. Encomendei a escarola na minha barraca predileta da feira: a barraca da dona Eliana. Toda feira tem uma barraca como a dela. É aquela barraca com as verduras mais vistosas, que exalam saúde e boa qualidade, indicando que as alfaces aguentam firmes e fortes alguns dias na geladeira. É aquela barraca de começo de mês, quando eu vou à feira de nariz empinado e feliz por poder pagar 10 reais na alface que vai durar até a semana seguinte.

Além de ser a barraca de boa qualidade, a dona Eliana é a japonesa da feira. Se eu perguntar – qual a barraca da japonesa? vão me apontar para lá, onde só tem brasileiros trabalhando, mas tem bogo, moyashi e tofu para vender. Quando eu morava em São Mateus, na periferia de São Paulo, eu não encontrava esses produtos na feira, mas sempre tinha uma barraca com nome japonês.

A razão dessa presença eu descobri há pouco tempo. Uma parte significativa dos imigrantes japoneses que vieram para São Paulo no início do século XX se especializaram no setor hortifruti. Começaram a fundar chácaras nos arredores da cidade e a vender seus produtos em feiras livres. Os japoneses e seus descendentes foram responsáveis por enriquecer e diversificar a alimentação da região de São Paulo, introduzindo novas variedades de verduras e aumentando a produção desse gênero de alimentos.

Bonito, né? Fiquei imaginando se a dona Eliana seria tataraneta de algum imigrante japonês que teve uma chácara em Itapecerica da Serra ou se ela foi parar no ramo por uma coincidência do destino.

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Se a escarola que eu comprei para rechear meu pastel pode existir por conta da sabedoria dos tataravós da Eliana, é possível que o pastel exista graças às mesmas pessoas. Procurando sobre a origem do pastel no google apareceram duas principais hipóteses: imigrantes chineses teriam inventado a receita, inspirados nos rolinhos primavera; ou imigrantes japoneses, inspirados nos mesmos rolinhos.

Independente de quem foi, o pastel acabou se tornando esse alimento brasileiro consumido tanto por crianças obrigadas a acompanharem suas mães nas feiras quanto por adultos que aceitam pagar um valor superfaturado por uma porção em um boteco.

É tão brasileiro que a receita é quase sempre apresentada com uma dúvida. Vai cachaça na massa ou não? Assisti a alguns vídeos para decidir qual receita fazer. Dois deles afirmavam com categoria que precisava da cachaça para o pastel ficar pururuca. Os outros falavam que isso poderia ser lenda. Será que deixa? Será que não deixa? Na dúvida, todos colocaram; e eu, como boa brasileira que gosta de uma mistura de lenda com tradição, coloquei também.

Queijo e o mercado

Também queria rechear os pasteis com queijo, então me preparei para ir à zona cerealista comprar uma muçarela cujo quilo não custasse mais que uma garrafa de vinho importado.

A região é relativamente perto de onde eu moro, mas o acesso é daqueles que a gente só acredita vendo. Eu precisei pegar o mesmo ônibus duas vezes. Isso mesmo, eu peguei um ônibus até o terminal parque dom Pedro II (que eu carinhosamente chamo de Pedrão), e lá entrei no mesmo ônibus que eu acabara de sair para andar um ponto até a av. Mercúrio. A distância é pequena, mas eu não tenho coragem de andar pela região sozinha, então preciso fazer esse trajeto que faz tanto sentido quanto a numeração dos ônibus de São Paulo.

Indignada, peguei o 702U-10 sentido centro e depois sentido bairro e desci na zona cerealista, o paraíso caótico de quem quer economizar e comer farinha de linhaça ao mesmo tempo.

Essa região é tradicionalmente um local de venda de comidas na cidade. No final do XIX, vendedores armavam ali suas barracas para vender frutas, ovos, aves e outros alimentos, naquilo que ficou popularmente conhecido como mercado dos caipiras. O mercado municipal viria a ser construído somente na década de 1930, quando os preceitos higienistas foram utilizados como argumento para implementar algumas reformas urbanas.

Fotografia antiga de mulher vendendo frutas

Vendedora de frutas no mercado dos caipiras. c. 1910. Vincenzo Pastore. Acervo IMS

A construção do Mercadão não tirou dali a desordem natural dessas regiões comerciais. Som alto, gente falando, gente apressada e preço baixo. Enquanto compro meu queijo no camanducaia por pouco mais de 40 reais o quilo, fiquei pensando se em 1910 as pessoas também se cansavam de ter que ir para a região:

-Menina, amanhã eu tenho que ir no mercado dos caipiras -Avemaria, cumadre, boa sorte! Vá cedo antes que cheguem os bondes da penha!

Imersão

Escarola comprada na quinta, queijo comprado sábado de manhã. No final da tarde, fiz a massa, abri e a guardei na geladeira até o horário do almoço de domingo, quando comecei a rechear.

O pastel parece que foge dessa lógica de puritanismo que algumas pessoas tem com salgados. Há quem diga que coxinha, só se for de frango, e enroladinho, de presunto e queijo. Mas qual será o sabor zero do pastel que faria os defensores da tradição gastronômica iniciarem uma briga inútil no twitter?

Tentei a sorte procurando em jornais antigos digitalizados, mas a pluralidade de significados da palavra “pastel”, variando de tom de cor à torta doce, dificultou minha busca.

Talvez a brasilidade do pastel inclua, além da cachaça misteriosa na massa, a variedade de poder rechear com o que quiser. Pois se tem uma coisa que brasileiro gosta, é de recheio. Foi aqui que as massas das baguettes e dos croissants abraçaram o queijo, o presunto, o frango e o peito de peru. E os suhis, bom, melhor nem comentar.

Com o pastel, está valendo tudo. Acho que até os mais tradicionais defendam uma variedade de três sabores carne moída, frango e queijo. Os mais famintos vão de especial. Eu e o mozão fomos de escarola com queijo.

Fotografia da minha mão segurando um pastel
Meu primeiro pastel

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