raissa

minhas distrações

Nasceu em algum confim da zona sul de São Paulo, onde implorou por carinho andando por ruas ainda não identificadas. Seu caminho cruzou com o de Andrea, que juntou dinheiro para castrá-lo e devolvê-lo às ruas, mas cujo plano não contava com a habilidade felina de invadir sua casa, obrigando um resgate efetivo.

Ação direta por ser resgatado. Ali recebeu o nome de Yuri, sua primeira identidade conhecida, e ficou à espera de uma adoção.

Após tentar cativar alguns adotantes, uniu experiência suficiente para, em agosto de 2021, implorar por carinho com Louvor e conquistar o Lucas. Migrou da zona sul para o centro em um Uber. Recebeu alguns nomes. Lasanha foi o primeiro.

Lasanha chegou no apartamento de duas gatas. Mostrou que seus métodos por demanda de amor eram diversos. Sabia pedir por carinho uivando de madrugada, deitando de barriga para cima e ocupando ativamente colos. Um militante.

De lasanha, virou Xepa, seu nome oficial. De Xepa, logo foi chamado de porco, o apelido que reinou no apartamento 702.

Seus métodos foram infalíveis enquanto viveu. Ação direta por sachê, carinho e colo.

Deixa dois tutores, duas gatas e muita saudade.

Xepa (? – 2023)

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vejo jornalistas usando a metáfora da guerra para falar do tratamento oncológico, mas talvez ela seja mais adequada para falar sobre o período seguinte: sensação de alívio, alegria, dúvida, dor, consequências que se arrastam por muito tempo e medo generalizado de tudo se repetir e, enfraquecido, o corpo não ter condições de enfrentar novamente as batalhas.

será que escolhem essa imagem porque os soldados voltam traumatizados sem conseguir viver suas vidas após o fim da guerra, como se ela ainda existisse, de alguma forma, dentro deles ou como se ela pudesse retornar a cada segundo seguinte? fulano venceu o câncer, mas será como se sempre pudesse perder.

as idas ao hospital se esparsam, mas não cessam. cada nódulo sentido é um anúncio do que está por vir. vai voltar, é claro que vai voltar. não tem como não voltar, esse corpo já está recheado de morte. não voltou.

Eu nunca tive câncer, mas por causa de uma batalha materna o medo da doença fica me rodeando. Depois do terceiro nódulo imaginário da minha mãe desaparecer em seis meses eu me acalmei. A vida vai ser assim agora, é controlar e não enlouquecer. Enquanto estava nesse momento, tive uma consulta que jogou na minha cara esse fantasma de guerra, marcando uma chuva de exames e o aviso de que eu deveria repeti-los com uma certa frequência. Eu discordo dessa postura, mas qual a possibilidade de argumentar com uma médica que já viu no meu corpo um campo minado armado há três décadas?

Se não é em um consultório, é um conhecido que depois do “tudo bem com você?” adiciona um “e sua mãe?”, já sabendo nessa pergunta há outra: “e o câncer da sua mãe, sarou?”.

Eu tento viver uma belle époque, mas sempre alguma coisinha me relembra que não tem mais como ser como antes porque o antes já passou, já era, virou tão passado quanto o meu histórico de saúde familiar perfeito. Diabetes na família? não. Pressão alta? Não. Câncer? Não.

Acho bonito ver postagens de pessoas anunciando que venceram a guerra e que estão curadas, nunca mais vão passar por isso, se deus quiser. É uma fé tão linda essa crença no futuro perfeito, que até me parece alcançável. Mas a memória me amarra.

Ao lado da porta de entrada da minha casa coloquei uma sequência de quatro fotos de 2021 para materializar esse fantasma que orbita minha vida:

1) Eu e minhas irmãs, com máscaras pff2, abraçando nossa mãe na calçada do hospital em um domingo frio. Era dia das mães e essa foi nossa comemoração. 2) Nós quatro e o nosso padrasto, na mesma calçada, mas com balões coloridos. Era o dia da última quimioterapia. 3) Eu, uma das minhas irmãs e nossa mãe, no quintal de casa. 4) Nós no natal daquele ano. Minha mãe já com cerca de 0,5cm de cabelo.

Quatro dias de um ano horrível. Souvenir de uma guerra.

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há algumas semanas eu fui à feira do livro na praça charles miller ver o show-aula do arthur nestrovski e do celso sim em homenagem ao repertório de joão gilberto.

eu acho que nunca havia parado para ouvir joão gilberto. a música Sampa até então me passava desapercebida. talvez seja por sua exaustiva repetição ou pelo título ter virado essa forma não paulistana de chamar a cidade. achava música de fundo, de quando algum programa da globo precisa ir para os comerciais e a produção toca uma música para fazer a transição. música de quem reclama do centro com nostalgia: -ah vai passar na ipiranga hoje pra ver o que acontece.

Quando Celso Sim começou a cantar os primeiros versos me dei conta de que era a primeira vez que eu ouvia essa música ao vivo. E a percepção veio como choro. Na dura poesia concreta eu já estava derretida e envergonhada por me emocionar com uma música tão clichê.

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Eu nasci em São Paulo. Sou uma paulistana comum, de pais cearenses e a primeira geração a nascer por aqui. Na minha família não tem essa de nona, nem de batchan, ninguém veio de lugar mais longe do que o Parazinho – pequeno distrito onde todos os meus antepassados nasceram. Há quem duvide dessa afirmação e tente achar um fio europeu nessa linhagem, como se não fosse possível conceber uma família brasileira sem uma certidão do mediterrâneo. Mas é isso, as três gerações que me antecedem, dos dois lados da família, vêm de lá. Todo mundo.

Todo mundo menos eu.

Eu nasci e cresci em São Paulo, na zona leste. Demorei 18 anos para perceber que a cidade era muito maior e mais diversa do que o meu bairro, e outros dez anos a mais para conseguir me mudar para o centro.

Hoje eu sou aquela moradora estereótipo do centro. Vou a pé para museus, corro no minhocão e fui caminhando para a feira do livro. Caminhei meia hora, vi um show maravilhoso de graça e voltei andando, um passeio de qualidade absurda sem gastar nem com passagem.

Voltei feliz e emocionada para casa, conversando sobre o privilégio de morar aqui. Quando saí da periferia me surpreendeu a quantidade de pessoas me perguntando sobre a segurança, como se agora eu devesse me preocupar com isso. Demorei a entender que, para esses colegas, o centro é que era perigoso e não o meu bairro anterior – que eles conheciam só de nome.

Comecei a achar que a razão para eu ter menosprezado a música Sampa todos esses anos seja por achar que ela tinha essa visão saopaulocentrista, são-paulo-cheia-de-prédios, selva, multidões se amontoando na baldeação do metrô, poesia concreta. Quando eu morava em São Mateus nada disso dialogava com a minha realidade pacata, quase interiorana.

Agora não são apenas pessoas, prédios e lixos que se amontoam onde eu vivo, mas as narrativas sobre a paisagem da minha janela. Desde que eu descobri que o centro existia, eu quis viver aqui, e desde que eu me mudei para cá, eu escuto pessoas falando que aqui é horrível. Seria esse o avesso do avesso?

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O que é São Paulo foi se ampliando. Meu território que antes era o bairro de casas na zona leste passou a compreender avenidas, linhas de ônibus, terminais, calçadas, museus, bares. O meu território hoje é outro, tem mais cheiros, mais vistas e mais gente.

Eu já conheço há bastante tempo os rostos nas filas e nas vilas, eu vi muitas coisas belas serem destruídas, eu vi muita fumaça em diferentes bairros. E agora a esquina concreta é aqui do lado de casa. É o meu bairro que é chamado de mau gosto, mau gosto, mau gosto.

Quando eu nasci por aqui eu nada entendi. Mas vi nascer tantos poetas, tantas deusas e espaços que, naquele show na festa do livro, acho que comecei a entender.

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Autorretrato

Comecei a me interessar por desenho há pouco tempo, menos de dois anos. Fiz alguns cursos sem muita pretensão de virar uma boa desenhista, só queria me divertir um pouco. Após algumas aulas e muito treino em retrato, eu continuo sem conseguir traçar no papel as linhas que só existem no meu campo de visão.

Mas por ter feito da minha cara meu principal material de estudo, olhei muito para mim, olhei demais, e olhei de um jeito que nunca havia olhado.

Até os 25 anos, eu me olhava no espelho em dois momentos: 1. para escovar os dentes; 2. para me arrumar, passar um creminho, um batom, abaixar o frizz rapidinho passando as duas mãos na raiz e as deslizando no sentido cumprimento dos fios. Em raros momentos, me maquiava, espremia cravos e tirava os pelos da sobrancelha e do bigode.

Aos 25, uma resolução de ano novo me fez experimentar o espelho de outra forma. Frequentando aulas de dança, passei a observar o meu corpo no espelho em situações muito mais diversas. Me descobri séria e magra. Eu não sabia que era tão carrancuda e tão pequena. Na minha cabeça eu tinha 1,80m e era tão gostosa quanto a Juliana Paes, embora as marcas no batente da porta do meu quarto tivessem parado de ser feitas há mais de dez anos. Aos 25 anos e do alto dos meus 1,50m eu descobri que eu era aquela menina baixinha e séria. A menorzinha, estreitinha, ossudinha.

Na pandemia, aos 29, fui obrigada a descobrir minha cara de tédio durante as reuniões online. E aos 31, após um ímpeto criativo resultante de uma sessão de análise, olhei para mim em busca de traços que pudessem ser reproduzidos em uma folha de papel, e me desenhei. Essa observação atenta na busca de captar a forma e o volume dos elementos que compõem a minha cabeça me fez notar características minhas que haviam me passado despercebidas até então.

Hoje eu sei que meu queixo é bem reto, dá quase para desenhá-lo usando uma régua. Meu olho direito é maior do que o esquerdo, ao contrário do meu lábio superior, que tem o lado esquerdo mais grosso do que o direito. Minha mandíbula é marcada e as sobrancelhas bem mais despenteadas do que dita o padrão instagram de beleza.

A cor mais escura extrapola os limites do desenho e da textura dos meus lábios, como se ele fosse naturalmente borrado nos cantos. E na transição da boca para o queixo há uma curva bem acentuada, deixando essa região quase sempre com uma sombra.

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Me lembro que nos primórdios da internet, quando as imagens eram raridade e tinham qualidade duvidosa, os perfis do orkut – e do par perfeito, o primeiro tinder – tinham a função de ser o espaço para as pessoas se descreverem. Uma serie de adjetivos batidos eram usados para atiçar a imaginação alheia, possibilitando que o outro criasse uma versão imaginada de nós.

O que eu acho mais difícil de explicar, é que nesse mundo de raras imagens digitais, a aparência já tinha uma centralidade inegável. E me impressiona o fato de que eu, que acompanhei essa mudança tecnológica ao longo da vida, até dois anos atrás não sabia de todos esses detalhes sobre o meu próprio rosto.

Mesmo sem usar instagram, mesmo sem ser o estereótipo da mulher vaidosa e sem saber o que são os filtros, eu negava as minhas características anatômicas mais básicas até começar a desenhar. Criei uma imagem imaginada de mim mesma, na qual meu corpo tinha uma forma e um volume diferente, e o meu rosto era era quase um borrão desfocado. Ocorreu algo na repetição, no olhar que busca dados, e não defeitos, que me fez tomar consciência do que é o meu rosto e de quem sou eu.

Hoje, se precisasse descrever minha aparência junto com minha personalidade, tal qual a raissa adolescente de 2004, faria algo assim: ossos protuberantes, ângulos marcados. em mim falta tanta simetria quanto simpatia.

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A única certeza na vida é a morte, já dizia minha mãe em quase todos os domingos de 1998 enquanto preparava o almoço. A frase concluía assuntos e fofocas sobre conhecidos que tinham feito apostas no destino. Casamentos que acabavam, surpreendendo a vizinhança; vendinhas que fechavam na rua de baixo ou até receitas que desandavam no meio do caminho.

Não dá pra ter certeza de nada nessa vida, filosofava a dona Fátima enquanto mexia a carne moída.

Mas eu adoro uma certeza. Mesmo a certeza de que não dá pra ter certeza de nada. Fico cavucando qualquer certeza no dia-a-dia e, sabendo da frustação, jogo toda minha expectativa e energia nesse ensinamento maternal óbvio.

Todos nós vamos morrer.

O ensinamento dos almoços dominicais é tão trivial quanto a fome que apertava enquanto preparávamos o arroz – e eu me agarrei nessa certeza única de um modo, confesso, um pouco esquisito. Eu penso e falo mais sobre a morte do que a maior parte das pessoas que conheço.

Mais de uma vez alertei casais recém juntados que eles teriam dificuldade em liberar o corpo um do outro no IML, a não ser que deixassem de preguiça e fossem assinar a união estável. Repreendida por olhares arregalados, aprendi que as pessoas vão ao cartório por duas razões mais recorrentes: convênio e amor. Eu, morte.

Aos 21 anos eu fiz uma poupança para pagar minha cremação quando eu morresse e também deixei preparado um envelope escrito “quando eu morrer” com informações bancárias para minha mãe acessar. Falei “ó mãe, aqui vai ficar esse envelope, tá? Quando eu morrer você já sabe onde encontrar tudo”. Fui solenemente ignorada.

Pelo visto, as pessoas vivem como se não fossem morrer; e eu, como se fosse morrer amanhã. Não no sentido legal de que “vivo cada dia como se fosse o último”, e sim no sentido de tentar controlar a única certeza que existe e que, por definição, é incontrolável. Usam a morte como conselho para aproveitar a vida. Talvez meu caminho seja o contrário. Talvez eu precise me esquecer um pouco da morte para conseguir curtir a imprevisibilidade da vida.

Minha cena predileta de Daria

Indicações mortais

Boneca Russa (Imdb) Nessa série disponível da Netflix, a protagonista entra em um loop: toda vez que morre, volta para o banheiro da sua festa de aniversário de 36 anos.

Six Feet Under ( Imdb) Direto do túnel do tempo de quem teve adolescência nos anos 2000. Cotidiano de uma família que possui uma funerária em Los Angeles. Disponível na HBO.

Escute as feras, de Nastassja Martin (Editora 34) Relato biográfico de quando a antropóloga francesa foi mordida por um urso na floresta siberiana. Experiência de quase morte que provocou diversas reflexões sobre a sua vida.

O voo, Memórias de um caramujo ( Spotify) A banda nem existe mais, mas adoro a narrativa dessa música. Uma cena mórbida cantada em tom alegre e cotidiano.

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Pastel é aquela comidinha que costuma mexer com nossos corações. O cheiro de óleo velho e o vinagrete azedinho são capazes de destravar memórias das mentes mais carrancudas.

Eu me lembro de quando eu tinha uns 9 anos e minha irmã era responsável por fazer feira com cerca de 10 reais, quantia que era pequena, mas que dava para fazer malabarismo e alimentar as quatro bocas lá de casa. Minha irmã já tinha aprendido o truque mais batido das donas de casa que precisavam economizar: ir para a feira na hora da xepa. Nem era orientação da nossa mãe, por vontade própria ela deixava para fazer a feira no final, comprava tudo bem barato para fazer sobrar 2 reais com destino certeiro: comprar dois pasteis, um para mim e outro para ela.

Hoje, nesse mundo pós-apocalíptico em que vivemos, não há malabarismo que faça sobrar dinheiro para comprar dois pasteis após a feira dominical. Fiz como a maioria dos brasileiros e deixei de comê-los nesses últimos anos. Até a última semana, quando tive uma ideia que não sei de onde veio, mas assim que veio eu enviei a mensagem para o conje:

-Vamos fazer pastel no domingo???

Escarola e Japão

Eu decidi que iria fazer pasteis de escarola e queijo. Encomendei a escarola na minha barraca predileta da feira: a barraca da dona Eliana. Toda feira tem uma barraca como a dela. É aquela barraca com as verduras mais vistosas, que exalam saúde e boa qualidade, indicando que as alfaces aguentam firmes e fortes alguns dias na geladeira. É aquela barraca de começo de mês, quando eu vou à feira de nariz empinado e feliz por poder pagar 10 reais na alface que vai durar até a semana seguinte.

Além de ser a barraca de boa qualidade, a dona Eliana é a japonesa da feira. Se eu perguntar – qual a barraca da japonesa? vão me apontar para lá, onde só tem brasileiros trabalhando, mas tem bogo, moyashi e tofu para vender. Quando eu morava em São Mateus, na periferia de São Paulo, eu não encontrava esses produtos na feira, mas sempre tinha uma barraca com nome japonês.

A razão dessa presença eu descobri há pouco tempo. Uma parte significativa dos imigrantes japoneses que vieram para São Paulo no início do século XX se especializaram no setor hortifruti. Começaram a fundar chácaras nos arredores da cidade e a vender seus produtos em feiras livres. Os japoneses e seus descendentes foram responsáveis por enriquecer e diversificar a alimentação da região de São Paulo, introduzindo novas variedades de verduras e aumentando a produção desse gênero de alimentos.

Bonito, né? Fiquei imaginando se a dona Eliana seria tataraneta de algum imigrante japonês que teve uma chácara em Itapecerica da Serra ou se ela foi parar no ramo por uma coincidência do destino.

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Se a escarola que eu comprei para rechear meu pastel pode existir por conta da sabedoria dos tataravós da Eliana, é possível que o pastel exista graças às mesmas pessoas. Procurando sobre a origem do pastel no google apareceram duas principais hipóteses: imigrantes chineses teriam inventado a receita, inspirados nos rolinhos primavera; ou imigrantes japoneses, inspirados nos mesmos rolinhos.

Independente de quem foi, o pastel acabou se tornando esse alimento brasileiro consumido tanto por crianças obrigadas a acompanharem suas mães nas feiras quanto por adultos que aceitam pagar um valor superfaturado por uma porção em um boteco.

É tão brasileiro que a receita é quase sempre apresentada com uma dúvida. Vai cachaça na massa ou não? Assisti a alguns vídeos para decidir qual receita fazer. Dois deles afirmavam com categoria que precisava da cachaça para o pastel ficar pururuca. Os outros falavam que isso poderia ser lenda. Será que deixa? Será que não deixa? Na dúvida, todos colocaram; e eu, como boa brasileira que gosta de uma mistura de lenda com tradição, coloquei também.

Queijo e o mercado

Também queria rechear os pasteis com queijo, então me preparei para ir à zona cerealista comprar uma muçarela cujo quilo não custasse mais que uma garrafa de vinho importado.

A região é relativamente perto de onde eu moro, mas o acesso é daqueles que a gente só acredita vendo. Eu precisei pegar o mesmo ônibus duas vezes. Isso mesmo, eu peguei um ônibus até o terminal parque dom Pedro II (que eu carinhosamente chamo de Pedrão), e lá entrei no mesmo ônibus que eu acabara de sair para andar um ponto até a av. Mercúrio. A distância é pequena, mas eu não tenho coragem de andar pela região sozinha, então preciso fazer esse trajeto que faz tanto sentido quanto a numeração dos ônibus de São Paulo.

Indignada, peguei o 702U-10 sentido centro e depois sentido bairro e desci na zona cerealista, o paraíso caótico de quem quer economizar e comer farinha de linhaça ao mesmo tempo.

Essa região é tradicionalmente um local de venda de comidas na cidade. No final do XIX, vendedores armavam ali suas barracas para vender frutas, ovos, aves e outros alimentos, naquilo que ficou popularmente conhecido como mercado dos caipiras. O mercado municipal viria a ser construído somente na década de 1930, quando os preceitos higienistas foram utilizados como argumento para implementar algumas reformas urbanas.

Fotografia antiga de mulher vendendo frutas

Vendedora de frutas no mercado dos caipiras. c. 1910. Vincenzo Pastore. Acervo IMS

A construção do Mercadão não tirou dali a desordem natural dessas regiões comerciais. Som alto, gente falando, gente apressada e preço baixo. Enquanto compro meu queijo no camanducaia por pouco mais de 40 reais o quilo, fiquei pensando se em 1910 as pessoas também se cansavam de ter que ir para a região:

-Menina, amanhã eu tenho que ir no mercado dos caipiras -Avemaria, cumadre, boa sorte! Vá cedo antes que cheguem os bondes da penha!

Imersão

Escarola comprada na quinta, queijo comprado sábado de manhã. No final da tarde, fiz a massa, abri e a guardei na geladeira até o horário do almoço de domingo, quando comecei a rechear.

O pastel parece que foge dessa lógica de puritanismo que algumas pessoas tem com salgados. Há quem diga que coxinha, só se for de frango, e enroladinho, de presunto e queijo. Mas qual será o sabor zero do pastel que faria os defensores da tradição gastronômica iniciarem uma briga inútil no twitter?

Tentei a sorte procurando em jornais antigos digitalizados, mas a pluralidade de significados da palavra “pastel”, variando de tom de cor à torta doce, dificultou minha busca.

Talvez a brasilidade do pastel inclua, além da cachaça misteriosa na massa, a variedade de poder rechear com o que quiser. Pois se tem uma coisa que brasileiro gosta, é de recheio. Foi aqui que as massas das baguettes e dos croissants abraçaram o queijo, o presunto, o frango e o peito de peru. E os suhis, bom, melhor nem comentar.

Com o pastel, está valendo tudo. Acho que até os mais tradicionais defendam uma variedade de três sabores carne moída, frango e queijo. Os mais famintos vão de especial. Eu e o mozão fomos de escarola com queijo.

Fotografia da minha mão segurando um pastel
Meu primeiro pastel

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Conheço poucas pessoas que não se sentem só, ou talvez eu conviva com grupos que não falam sobre o quão sozinhos se sentem. Deve ser preciso uma pitada de coragem para assumir isso, por que quando nos queixamos para os outros, contrapontos mágicos são apresentados como se o sentimento não tivesse razão de existir

mas não tem fulano? – mas você não é casada?– mas quem precisa de alguém? você se basta!

Em janeiro eu li “Uma tristeza infinita”, do Xerxenesky, e teve uma parte muito bonita que ficou martelando na minha cabeça, que é um diálogo em que a esposa dele explica que os átomos possuem muitos espaços vazios, sendo a maior parte deles preenchida por um grande e infinito nada. Como consequência, nosso próprio corpo seria habitado por um imenso vazio.

“[...] todos somos tristes, terrivelmente tristes, e estamos imersos nessa tristeza infinita, cósmica, uma tristeza do tamanho do universo ou do espaço vazio dentro do átomo [...]”

A ausência nos preenche. Há alguma coisa que deveria estar lá e que não está; mas se essa sensação atravessa países e gerações será que há mesmo algo que deveria estar ali ou somos nós que vamos criando esses buraquinhos junto com a ilusão de que eles devem ser preenchidos?

Nessa semana eu encontrei com a minha mãe que, repleta de humanidade, estava se sentindo só. Ela associou o sentimento com o processo de envelhecimento, com a proximidade da aposentadoria e com vislumbre desse período da vida com 40h semanais a mais a serem preenchidas.

Acredito que conforme os anos passem, essa sensação vá nos orbitando cada vez com mais proximidade. No final do ano passado, vi no twitter um gráfico mostrando com quem os americanos passavam mais tempo de acordo com a idade. O resultado, embora óbvio, foi um tanto angustiante de ser visualizado.

Família e amigos descem ladeira abaixo conforme o tempo vai sendo ocupado com trabalho, companheiro e filhos. A perspectiva por volta dos sessenta é mais solitária: ficar sozinho e com o cônjuge.

Solitária, e não triste, pois esses dados não precisam ser carregados de desesperança e pessimismo. Estar e sentir-se só não são uma patologia a ser curada, mas uma condição da vida humana. Com esse raciocínio, Ana Suy nos fornece uma visão psicanalítica que considero muito bonita – ela afirma que sempre estamos sozinhos, pois somos todos seres faltantes.

Claro que a inerência da solidão não a torna menos dolorida. Não sei o que nos faz achar que deveríamos viver mais próximos um dos outros e compartilharmos da nossa intimidade com mais pessoas, mas a realidade é que sentir que precisamos de alguém para que sejamos capazes de fazer algo é uma estrutura de pensamento que dói como o medo de ficar sozinha no recreio do 6º ano. Talvez o caminho das pedras seja encontrar formas de escapar desse pensamento circular para descobrir novas possibilidades de ação, prazer e sentido que a solidão nos abre. Estar sozinho não é sinônimo de dor.

Penso que estar sozinho não necessariamente é um sofrimento, mas, para além disso, é um grande alívio, um belo convite ao exercício do amor, essa experiência interessante que cada um vive sozinho junto a alguns outros ao longo da nossa passagem pelo mundo.

referências

Ana Suy. A gente mira no amor e acerta na solidão. Companhia das Letras, 2022

Antônio Xerxenesky. Uma tristeza Infinita. Companhia das Letras, 2021

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Na semana passada, fui visitar a exposição “Modernas! São Paulo vista por elas” no Museu Judaico, onde estão expostas fotografias da capital paulista feitas ao longo do século 20 por sete mulheres.

A expografia era fluida, sem divisão rígida por salas e sem ordem clara do sentido de visitação. Os núcleos eram organizados por autoras, divisão que só se tornava evidente para quem lia as legendas agrupadas ao final de cada parede. Privilegiou-se, desta forma, as imagens, o olhar e o olhar para a cidade.

Talvez só o início da exposição escapava dessa fluidez. Ao lado do texto curatorial e do texto institucional estavam localizadas quatro imagens e uma delas me chamou atenção por estar imediatamente ao lado do texto: a fotografia de uma estrutura de outdoor, feita por Alice Brill.

Os mais velhos talvez se lembrem dessas estruturas e da sensação de vê-las pela cidade. Isso não era comum, o mais recorrente era que estivessem cobertas por algum anúncio de loja ou de produto. Ver a estrutura assim, à mostra, era ver algo que se sabe da existência, mas que, ainda assim, surpreende.

Também permitia ver um pedaço encoberto da cidade, percebê-la por novos ângulos ou enquadrá-la como um cartão postal, como sugeriu Brill ao colocar o prédio Banespa ao centro.

Em São Paulo, a gente quase sempre observa através de algo: janelas, vitrines, lentes, grades – e agora, telas. A estrutura vazia do outdoor evidenciava o espaço que a publicidade ocupava na cidade e elevava o ver através a uma dimensão monumental.

Enquanto percorria a exposição, eu imaginava essas mulheres estrangeiras caminhando pelo centro de São Paulo com suas câmeras a postos, dialogando com algumas pessoas e ignorando outras. Pelos seus visores elas viam uma cidade emoldurada e faziam um recorte daquele cotidiano barulhento.

Conforme me deslocava, notei que a estrutura da exposição também me permitia ver através de: ao invés de paredes, os núcleos eram divididos por estruturas vazadas de madeira que, tal como a estrutura do outdoor, serviam para fixar imagens.

Se observar a estrutura por detrás dos imensos anúncios publicitários evidenciava uma parte escondida do cotidiano da cidade, talvez as fotografias expostas pudessem causar impacto semelhante.

A habilidade técnica das fotógrafas permitiu a elaboração de imagens que tratavam de um dia-a-dia corriqueiro, mas cujos ângulos, interpretações e contrastes direcionavam o olhar para além do que já era conhecido.

Para saber mais sobre a exposição: https://museujudaicosp.org.br/exposicoes/modernas-sao-paulo-vista-por-elas/

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Eu tenho três gatos – a Margarida, a Bartolomeia e o Xepa – e os três usam granulado de madeira desde que chegaram aqui em casa.

A gente compra as coisas deles em uma loja pequena do bairro, dessas que tem só três corredores de produtos, os funcionários não tem crachá e dá pra conhecer a recepcionista por nome, a Vanessa. Em dezembro, Vanessa nos avisou que estava sem granulado e sem previsão de retorno. Fomos então a uma loja maior, dessas redes grandes, com muitos corredores e funcionários encrachazados que pedem para ajudar a cada 5 minutos.

Tinha o granulado? Não tinha, mas tinha um aviso na prateleira, impresso em uma folha amarela amassada:

“o produto está com abastecimento irregular por conta dos conflitos que ocorrem na Ucrânia”

Fiquei curiosa e fui pesquisar sobre o que o granulado de madeira dos gatos tem a ver com a guerra que acontece a mais de 10 mil km da minha casa.

No ano passado, em 2022, a Europa impôs diversas sanções contra a Rússia, e uma delas foi a interrupção da importação de pellets de madeira. O país era um dos principais fornecedores desse peculiar produto que eu não ouvia falar desde o cursinho pré-vestibular.

O pellett, além de servir como banheiro de gato, é usado como uma fonte de energia doméstica e industrial classificada como Biomassa. É feito a partir de subprodutos da madeira, como desperdícios da indústria, que são prensados no formato cilíndrico e queimados para produzir energia.

Algumas casas no Reino Unido possuem sistema de aquecimento movido a pellett, que desapareceu das prateleiras após a sanção. Sem encontrar o combustível, moradores estão optando por queimar os granulados de madeira destinados aos gatos, que parecem ter composição quase similar.

Os gatos britânicos pelo visto estão numa situação banheiral um pouco mais delicada que os meus vira-latas brasileiros. As marcas de granulado de madeira não estão conseguindo manter a produção devido a dificuldade de encontrar matéria-prima, e os pacotes que vão para os mercados são comprados por pessoas que querem aquecer as suas casas. Os felinos ingleses devem estar voltando para a boa e velha areia.

Mas como esse cenário afetou o banheiro da Margarida, da Bartolomeia e do Xepa? O Brasil produz pellett, especialmente na região sul, o que deveria suprir nosso consumo interno, não fosse o aumento da demanda europeia. Pelo visto, os produtores de pellett aumentaram a exportação do produto, decisão que impacta a vida dos meus gatos e de setores da indústria local.

A vida é assim. Um dia a Rússia declara guerra contra a Ucrânia. Um ano depois, meus gatos precisam se adaptar a uma nova areia.

Fontes:

https://www.kittilitt.co.uk/wood-based-cat-litter-shortage/

https://www.telegraph.co.uk/business/2023/01/07/households-burn-cat-litter-heat-homes-amid-wood-pellet-shortage/

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