memórias da guerra
vejo jornalistas usando a metáfora da guerra para falar do tratamento oncológico, mas talvez ela seja mais adequada para falar sobre o período seguinte: sensação de alívio, alegria, dúvida, dor, consequências que se arrastam por muito tempo e medo generalizado de tudo se repetir e, enfraquecido, o corpo não ter condições de enfrentar novamente as batalhas.
será que escolhem essa imagem porque os soldados voltam traumatizados sem conseguir viver suas vidas após o fim da guerra, como se ela ainda existisse, de alguma forma, dentro deles ou como se ela pudesse retornar a cada segundo seguinte? fulano venceu o câncer, mas será como se sempre pudesse perder.
as idas ao hospital se esparsam, mas não cessam. cada nódulo sentido é um anúncio do que está por vir. vai voltar, é claro que vai voltar. não tem como não voltar, esse corpo já está recheado de morte. não voltou.
Eu nunca tive câncer, mas por causa de uma batalha materna o medo da doença fica me rodeando. Depois do terceiro nódulo imaginário da minha mãe desaparecer em seis meses eu me acalmei. A vida vai ser assim agora, é controlar e não enlouquecer. Enquanto estava nesse momento, tive uma consulta que jogou na minha cara esse fantasma de guerra, marcando uma chuva de exames e o aviso de que eu deveria repeti-los com uma certa frequência. Eu discordo dessa postura, mas qual a possibilidade de argumentar com uma médica que já viu no meu corpo um campo minado armado há três décadas?
Se não é em um consultório, é um conhecido que depois do “tudo bem com você?” adiciona um “e sua mãe?”, já sabendo nessa pergunta há outra: “e o câncer da sua mãe, sarou?”.
Eu tento viver uma belle époque, mas sempre alguma coisinha me relembra que não tem mais como ser como antes porque o antes já passou, já era, virou tão passado quanto o meu histórico de saúde familiar perfeito. Diabetes na família? não. Pressão alta? Não. Câncer? Não.
Acho bonito ver postagens de pessoas anunciando que venceram a guerra e que estão curadas, nunca mais vão passar por isso, se deus quiser. É uma fé tão linda essa crença no futuro perfeito, que até me parece alcançável. Mas a memória me amarra.
Ao lado da porta de entrada da minha casa coloquei uma sequência de quatro fotos de 2021 para materializar esse fantasma que orbita minha vida:
1) Eu e minhas irmãs, com máscaras pff2, abraçando nossa mãe na calçada do hospital em um domingo frio. Era dia das mães e essa foi nossa comemoração. 2) Nós quatro e o nosso padrasto, na mesma calçada, mas com balões coloridos. Era o dia da última quimioterapia. 3) Eu, uma das minhas irmãs e nossa mãe, no quintal de casa. 4) Nós no natal daquele ano. Minha mãe já com cerca de 0,5cm de cabelo.
Quatro dias de um ano horrível. Souvenir de uma guerra.
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