eu nada entendi

há algumas semanas eu fui à feira do livro na praça charles miller ver o show-aula do arthur nestrovski e do celso sim em homenagem ao repertório de joão gilberto.

eu acho que nunca havia parado para ouvir joão gilberto. a música Sampa até então me passava desapercebida. talvez seja por sua exaustiva repetição ou pelo título ter virado essa forma não paulistana de chamar a cidade. achava música de fundo, de quando algum programa da globo precisa ir para os comerciais e a produção toca uma música para fazer a transição. música de quem reclama do centro com nostalgia: -ah vai passar na ipiranga hoje pra ver o que acontece.

Quando Celso Sim começou a cantar os primeiros versos me dei conta de que era a primeira vez que eu ouvia essa música ao vivo. E a percepção veio como choro. Na dura poesia concreta eu já estava derretida e envergonhada por me emocionar com uma música tão clichê.

***

Eu nasci em São Paulo. Sou uma paulistana comum, de pais cearenses e a primeira geração a nascer por aqui. Na minha família não tem essa de nona, nem de batchan, ninguém veio de lugar mais longe do que o Parazinho – pequeno distrito onde todos os meus antepassados nasceram. Há quem duvide dessa afirmação e tente achar um fio europeu nessa linhagem, como se não fosse possível conceber uma família brasileira sem uma certidão do mediterrâneo. Mas é isso, as três gerações que me antecedem, dos dois lados da família, vêm de lá. Todo mundo.

Todo mundo menos eu.

Eu nasci e cresci em São Paulo, na zona leste. Demorei 18 anos para perceber que a cidade era muito maior e mais diversa do que o meu bairro, e outros dez anos a mais para conseguir me mudar para o centro.

Hoje eu sou aquela moradora estereótipo do centro. Vou a pé para museus, corro no minhocão e fui caminhando para a feira do livro. Caminhei meia hora, vi um show maravilhoso de graça e voltei andando, um passeio de qualidade absurda sem gastar nem com passagem.

Voltei feliz e emocionada para casa, conversando sobre o privilégio de morar aqui. Quando saí da periferia me surpreendeu a quantidade de pessoas me perguntando sobre a segurança, como se agora eu devesse me preocupar com isso. Demorei a entender que, para esses colegas, o centro é que era perigoso e não o meu bairro anterior – que eles conheciam só de nome.

Comecei a achar que a razão para eu ter menosprezado a música Sampa todos esses anos seja por achar que ela tinha essa visão saopaulocentrista, são-paulo-cheia-de-prédios, selva, multidões se amontoando na baldeação do metrô, poesia concreta. Quando eu morava em São Mateus nada disso dialogava com a minha realidade pacata, quase interiorana.

Agora não são apenas pessoas, prédios e lixos que se amontoam onde eu vivo, mas as narrativas sobre a paisagem da minha janela. Desde que eu descobri que o centro existia, eu quis viver aqui, e desde que eu me mudei para cá, eu escuto pessoas falando que aqui é horrível. Seria esse o avesso do avesso?

***

O que é São Paulo foi se ampliando. Meu território que antes era o bairro de casas na zona leste passou a compreender avenidas, linhas de ônibus, terminais, calçadas, museus, bares. O meu território hoje é outro, tem mais cheiros, mais vistas e mais gente.

Eu já conheço há bastante tempo os rostos nas filas e nas vilas, eu vi muitas coisas belas serem destruídas, eu vi muita fumaça em diferentes bairros. E agora a esquina concreta é aqui do lado de casa. É o meu bairro que é chamado de mau gosto, mau gosto, mau gosto.

Quando eu nasci por aqui eu nada entendi. Mas vi nascer tantos poetas, tantas deusas e espaços que, naquele show na festa do livro, acho que comecei a entender.

__________________________