Autorretrato

Comecei a me interessar por desenho há pouco tempo, menos de dois anos. Fiz alguns cursos sem muita pretensão de virar uma boa desenhista, só queria me divertir um pouco. Após algumas aulas e muito treino em retrato, eu continuo sem conseguir traçar no papel as linhas que só existem no meu campo de visão.

Mas por ter feito da minha cara meu principal material de estudo, olhei muito para mim, olhei demais, e olhei de um jeito que nunca havia olhado.

Até os 25 anos, eu me olhava no espelho em dois momentos: 1. para escovar os dentes; 2. para me arrumar, passar um creminho, um batom, abaixar o frizz rapidinho passando as duas mãos na raiz e as deslizando no sentido cumprimento dos fios. Em raros momentos, me maquiava, espremia cravos e tirava os pelos da sobrancelha e do bigode.

Aos 25, uma resolução de ano novo me fez experimentar o espelho de outra forma. Frequentando aulas de dança, passei a observar o meu corpo no espelho em situações muito mais diversas. Me descobri séria e magra. Eu não sabia que era tão carrancuda e tão pequena. Na minha cabeça eu tinha 1,80m e era tão gostosa quanto a Juliana Paes, embora as marcas no batente da porta do meu quarto tivessem parado de ser feitas há mais de dez anos. Aos 25 anos e do alto dos meus 1,50m eu descobri que eu era aquela menina baixinha e séria. A menorzinha, estreitinha, ossudinha.

Na pandemia, aos 29, fui obrigada a descobrir minha cara de tédio durante as reuniões online. E aos 31, após um ímpeto criativo resultante de uma sessão de análise, olhei para mim em busca de traços que pudessem ser reproduzidos em uma folha de papel, e me desenhei. Essa observação atenta na busca de captar a forma e o volume dos elementos que compõem a minha cabeça me fez notar características minhas que haviam me passado despercebidas até então.

Hoje eu sei que meu queixo é bem reto, dá quase para desenhá-lo usando uma régua. Meu olho direito é maior do que o esquerdo, ao contrário do meu lábio superior, que tem o lado esquerdo mais grosso do que o direito. Minha mandíbula é marcada e as sobrancelhas bem mais despenteadas do que dita o padrão instagram de beleza.

A cor mais escura extrapola os limites do desenho e da textura dos meus lábios, como se ele fosse naturalmente borrado nos cantos. E na transição da boca para o queixo há uma curva bem acentuada, deixando essa região quase sempre com uma sombra.

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Me lembro que nos primórdios da internet, quando as imagens eram raridade e tinham qualidade duvidosa, os perfis do orkut – e do par perfeito, o primeiro tinder – tinham a função de ser o espaço para as pessoas se descreverem. Uma serie de adjetivos batidos eram usados para atiçar a imaginação alheia, possibilitando que o outro criasse uma versão imaginada de nós.

O que eu acho mais difícil de explicar, é que nesse mundo de raras imagens digitais, a aparência já tinha uma centralidade inegável. E me impressiona o fato de que eu, que acompanhei essa mudança tecnológica ao longo da vida, até dois anos atrás não sabia de todos esses detalhes sobre o meu próprio rosto.

Mesmo sem usar instagram, mesmo sem ser o estereótipo da mulher vaidosa e sem saber o que são os filtros, eu negava as minhas características anatômicas mais básicas até começar a desenhar. Criei uma imagem imaginada de mim mesma, na qual meu corpo tinha uma forma e um volume diferente, e o meu rosto era era quase um borrão desfocado. Ocorreu algo na repetição, no olhar que busca dados, e não defeitos, que me fez tomar consciência do que é o meu rosto e de quem sou eu.

Hoje, se precisasse descrever minha aparência junto com minha personalidade, tal qual a raissa adolescente de 2004, faria algo assim: ossos protuberantes, ângulos marcados. em mim falta tanta simetria quanto simpatia.

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